Pontos Principais
- A auto-organização refere-se ao processo natural das relações humanas, algo similar em todos os níveis de ordem no mundo natural;
- As dinâmicas da auto-organização são muito mais ricas e complexas do que o simples modelo padrão que usamos para modelá-las;
- Estar apto para entender esta dinâmica nos permite desenvolver novos potenciais em equipes;
- O nível de confiança aumenta quando reconhecemos nossa capacidade humana básica de colaborar com o outro;
- As aplicações baseadas em narrativa podem demonstrar alguns padrões sutis que modelam o potencial da equipe para agir de certas maneiras (e não outras) ao longo do tempo.
Não existe um padrão específico que surge a partir da auto-organização. Os processos são tão profundos e fundamentais para as interações humanas que não se pode forçar nenhum padrão hierárquico ou não-hierárquico com regras. A confiança entre pessoas é um efeito resultante de permitir que as pessoas se auto-organizarem livremente. Redes complexas de confiança surgem e mudam enquanto pessoas negociam seus relacionamentos.
Bonnitta Roy, autora, professora, filósofa e consultora, falou sobre auto-organização na Conferência Agile People Sweden. O InfoQ cobriu a conferência com notícias, entrevistas e artigos. Os resumos das sessões podem ser encontrados em Apresentações da manhã do Agile People Sweden e em Apresentações da tarde do Agile People Sweden.
O InfoQ entrevistou Roy sobre como a auto-organização acontece.
InfoQ: As opiniões sobre o funcionamento da auto-organização variam. Alguns acreditam nisso enquanto outros são céticos ou críticos a respeito. Por quê?
Bonnitta Roy: Às vezes, as pessoas acreditam que há um resultado específico vindo de processos auto-organizados. Por exemplo, as pessoas têm discutido por muito tempo que a hierarquia é o resultado predominante dos processos sociais na natureza. Mas foi provado que é insustentável. A natureza se auto-organiza em padrões complexos e plurais. O que vemos depende da forma como investigamos os padrões. Por exemplo, costumávamos ilustrar uma rede de alimentos em uma pirâmide hierárquica simples, ou em uma cadeia alimentar linear. Agora, utilizamos computadores para visualizar a complexidade da rede de alimentos que representa a troca de energia em sistemas ecológicos. O mesmo acontece com cavalos; pensávamos que o rebanho era dominado pelo garanhão, no topo de uma hierarquia simples. Agora, entendemos que a dinâmica do rebanho é muito mais sofisticada, sobreposta e complexa.
Por outro lado, na comunidade ágil, a noção de auto-organização passou a significar resultados com características não-hierárquicas, igualitárias ou de pessoa para pessoa. De fato, é possível para as dinâmicas de auto-organização criar qualquer um destes ou outros padrões. Os padrões emergentes dependem dos fatores encontrados no ambiente, como: condições, restrições e circunstâncias. O padrão emergente também é dependente das características-chave dos próprios agentes - como eles expressam sua autonomia, relacionamentos e ações. Esta é uma verdade tanto para animais e plantas quanto para pessoas.
Críticos da auto-organização reclamam de um ou mais padrões que podem surgir. As pessoas em ambos os lados deste argumento, - aqueles que admiram hierarquias e aqueles que são alérgicos a elas, - querem somente um simples resultado que seja atrativo. Desejam regras que controlarão os padrões das relações humanas. No fim, isso não é possível. As pessoas simplesmente se auto-organizam de formas não-oficiais apesar da regras oficiais dizerem que "devemos ser uma hierarquia" ou "devemos ser igualitários". O atual processo complexo de relacionamento humano não pode ser reduzido para se encaixar em qualquer um dos padrões.
Quem acredita que a auto-organização é um tema importante na vida organizacional, entende que a auto-organização é a fonte de inovação criativa e de coerência em sistemas complexos. Acreditamos que a compreensão da auto-organização significa que podemos nos transformar mais conscientes sobre como encaramos os desafios organizacionais. Acreditamos que ao projetar considerando essas dinâmicas, podemos projetar para potenciais que aparecem em equipes colaborativas.
InfoQ: Foi abordado que a auto-organização é profunda dentro do código evolucionário da vida. Pode comentar um pouco mais sobre isso?
Roy: O que é mais profundo do que uma molécula de DNA? Sabemos que o DNA se replica, mas ele não se duplica e se divide em dois simplesmente. Isso requer uma auto-montagem de muitos outros tipos de moléculas, incluindo transferências e mensagens do RNA, enzimas que cortam e enzimas que colam a molécula de DNA de volta, etc. Além disso, todas estas moléculas se organizam em volta de estações intracelulares chamadas ribossomos, que são compostos pelas próprias moléculas que se auto-compõem. Os ribossomos não são capazes de executar as suas tarefas sem uma auto-montagem combinada com outros processos intracelulares. Por sua vez, as células não podem viver sozinhas sem uma rede auto-organizada de outras células e seu ambiente extracelular. Isso acontece em todas as escalas da vida. Plantas e solo, árvores e o ecossistema da floresta. Não existe um planejamento de como isso acontece. As árvores não sabem como ser uma floresta, ainda que florestas se auto-organizem como uma savana ou um recife de corais. De acordo com o filósofo-cientista Stuart Kaufmann, a evolução pela seleção natural é necessária, mas não o suficiente para produzir vida. A auto-organização é um princípio necessário para a vida acontecer.
InfoQ: A confiança é fundamental para a auto-organização. Como podemos construir a confiança?
Roy: Faço um workshop em desenvolvimento de redes confiáveis e sempre me surpreendo no quão pouco concordamos no significado de confiança e como isso ocorre em nossas vidas. Podemos tentar um simples exercício conosco. Coloque um ponto no meio do papel; este ponto representa você. Desenhe uma série de círculos concêntricos ao redor do ponto. Pense na pessoa em que mais confia e em seguida coloque-a dentro do círculo menor. Agora perceba uma fronteira ou limite no qual poucas pessoas em que confia muito estão qualificadas para este santuário dentro deste círculo, enquanto outras pertencem no próximo círculo, mais distante. Quando se sente dentro da noção de uma rede confiável, outras pessoas que se conhece pessoalmente ou no trabalho não farão parte de círculos próximos. Eles irão pertencer aos mais distantes até os relacionamentos se encaixarem em categorias de "conhecidos casuais". É possível ter algumas pessoas listadas como "nenhum pouco confiável!".
A questão para se perguntar é: quais são os tópicos que estão medindo esse sentimento de confiança? Algumas pessoas pensam que confiança é uma questão de "previsibilidade", enquanto outras pensam que é uma questão de "responsabilidade". Algumas pessoas constroem a confiança baseada em intenção e proposta, enquanto outras encaram isso como habilidades necessárias para agir de forma confiável em uma determinada situação. As pessoas descobrem que a confiança não é algo que se liga e desliga; é mais como uma medida de quem está próximo e quem está mais distante na nossa rede de confiança.
Não poderia dizer que a confiança é um pré-requisito para a auto-organização. Poderia dizer que auto-organizamos a nossa rede de confiança por meio da participação contínua em um processo complexo de relacionamentos humanos. Confiança é um sentimento padrão que emerge, um padrão implícito de com quem ampliamos um bom acordo de confiança e com quem depositamos nossa confiança, em vários níveis.
Agora, imagine uma organização que sobrepõe o campo das redes confiáveis que emanam de todos os participantes. Certos indivíduos ocupam pontos altamente significativos desta rede e, como tal, são aceleradores de confiança cruciais por meio da rede. Se realmente quiser visualizar como sua organização funciona, inicie identificando todas estas redes confiáveis.
InfoQ: Existem técnicas ou práticas recomendada para identificar redes de confiança em organizações e aumentar o nível médio de confiança?
Roy: Como é muito fácil para nós identificar quando a confiança é quebrada, o primeiro passo é ajudar as pessoas a perceber as diversas formas de confiança ordinárias do nosso dia-a-dia, que temos uns com os outros. Podemos ajudar as pessoas a comprometer-se com o "discurso avaliativo" - conversas cujo foco é avaliar o que é mais importante para as pessoas. Podemos ajudar as pessoas a ouvirem mais cuidadosamente e receber dos outros uma perspectiva tão genuína e autêntica como se fosse nossa. No meu próprio trabalho, tentei desenhar modelos e heurísticas simples que possibilitaram às pessoas explorar relacionamentos pessoais sem expor muita ansiedade social de uma vez. Por exemplo, a fórmula do poder vinda do meu trabalho: Poder como uma assimetria entre as necessidades/vontades e as habilidades/recursos, é uma ótima ferramenta para o fortalecimento das redes confiáveis.
Ferramentas úteis e facilitação por "experts" não são suficientes. Precisa de facilitadores que são treinados em tópicos como a Arte da Hospedagem, ou a prática do meu próprio Pensamento Coletivo. Os facilitadores precisam ter a capacidade de "crítica reflexiva", então poderão permitir que tudo que está no espaço possa vir à tona sem julgamentos, tendências ou preconceitos. Devemos estar atentos às realidades biológica e existencial da nossa condição humana - a necessidade tanto de autonomia e quanto de relacionamentos, assim como a necessidade de colaborarmos para prosperar como seres humanos. Contudo, ainda não é o suficiente. Também devemos reconhecer que as barreiras entre pessoas têm funcionado como uma importante plataforma para aqueles que encontraram uma estrutura violenta na vida institucional moderna. Essas barreiras precisam ser desconstruídas habilmente para que pessoas se abram em esferas maiores de confiança. Isso significa que precisamos estar atentos aos componentes estruturais da própria organização. O que precisa ser modificado na organização para que as pessoas dêem o próximo passo em direção à profunda confiança? Tudo isso aparece em sentidos dinâmicos e holísticos. Talvez esta seja uma chamada para um novo tipo de carreira na sociedade.
InfoQ: Em seu discurso, foi sugerido a utilização de ferramentas baseadas em narrativa para encontrar o estado em que se está para então decidir o que fazer. Pode dar um exemplo?
Roy: Desenvolvemos uma ferramenta chamada TAP, cuja qual suporta a ação potencial da equipe. Esta ferramenta é desenhada para revelar as lógicas de ações implícitas que surgem somente em nível coletivo. Neste caso, definimos o "estado" da equipe como "preparado para a ação" em uma determinada situação. Por exemplo, sua equipe está preparada para inovação baseada em tendências disruptivas ou mais propenso a iterar e refinar baseado nos sucessos recentes? Sua equipe está incubando novos relacionamentos e visões, ou afundando em protótipos e experimentação?
A ideia aqui é que as pessoas estão sempre sentindo e interpretando seu ambiente. As previsões de mercado, por exemplo, são baseadas em fatos de senso comum para as pessoas - que, quando reunidas, fazem melhores previsões do que especialistas analisando dados de outras maneiras. Ferramentas como o TAP são projetadas para "obter" o implícito, talvez o sentido inconsciente do que as pessoas estejam fazendo, conforme como se sentem e respondem às suas tensões diárias, desafios, oportunidades e sucesso. As equipes geralmente se colocam em um "estado estável" que ignora ou resiste à mudança. Os perfis TAP podem detectar isso. A equipe ideal irá mudar para o "estado pronto", mudando suas lógicas de ação de acordo com a mudança de contextos. Isso ajuda as equipes a terem a segunda e terceira sequência de feedbacks, acelera o aprendizado e desenvolve o desempenho em níveis coletivos.
InfoQ: O que as organizações podem fazer para que a auto-organização aconteça?
Roy: Estou projetando junto com alguns colegas um grupo de práticas que podem ajudar companhias a navegar seu próprio caminho para a auto-organização. O primeiro passo é criar o que chamamos de posição inicial. Queremos deixar explícito o que já está acontecendo "abaixo dos radares" para poder falar em vida organizacional. Quais são as regras não-oficiais que as pessoas já seguem? Podemos identificar uma rede confiável significativa e como a confiança pode estar fragmentada? Queremos ressaltar os fluxos de valores que estão operando - chamados de "condutores principais" pela sociocracia em diferentes ramos de trabalho. Isso fornecerá uma visão holística da organização em uma posição inicial.
O segundo passo é investigar por meio do engajamento coletivo: para onde iremos daqui? Nesta etapa, ajudamos a construir capacidade das equipes para serem mais estrategicamente esclarecidas por ensiná-los as quatro linguagens da mudança. Neste caminho, as equipes da linha de frente começam a conectar seu trabalho com toda a grande estratégia da organização e iniciam o engajamento com a camada superior de liderança a partir de múltiplas perspectivas - uma vantagem significativa na complexidade do mundo hoje.
InfoQ: Se os leitores do InfoQ quiserem aprender sobre a auto-organização, o que eles podem procurar?
Roy: Se os leitores quiserem aprender mais sobre a teoria da auto-organização, recomendo o livro de Stuart Kaufmann, "Em casa no universo" (At Home in the Universe), com o subtítulo "A busca pelas leis da auto-organização e complexidade". As pessoas interessadas em processos complexos dos relacionamentos humanos deveriam ler "A dinâmica do gerenciamento técnico e organizacional" (Strategic Management and Organizational Dynamics), de Ralph Stacey. As pessoas interessadas no que pode acontecer se uma grande empresa atual adotar uma abordagem radical de auto-organização, deveriam ler "Maverick", de Ricardo Semler, ou procurar e assistir muitos de seus vídeos. Isso é um grande compromisso!
Quero ajudar as pessoas a entenderem estas ideias em um formato que seja simples e direto. Além disso, atualmente estou escrevendo dois livros: O "The OPO Playbook" e o "Nosso futuro no trabalho" (Our future at work). Os iniciantes podem ler alguns dos meus trabalhos no Medium em Nosso futuro no trabalho.
Sobre a entrevistada
Bonnitta Roy é membro-fundadora da APP Associates International, uma rede de profissionais que pratica a participação aberta no espaço de trabalho para que as pessoas possam crescer e as organizações possam prosperar.